O EQUILIBRISTA: A QUESTÃO DA CONDIÇÃO HUMANA E AS CONSEQUÊNCIAS SOCIOPOLÍTICAS DA CRISE DA CONCEPÇÃO DE SUJEITO (PARTE 3)
As implicações Práticas da Discussão Antropológica em Nossos Dias
Apesar da variedade e das várias retratações resgatando o elemento da transitoriedade
e ambivalência do comportamento humano, haveria, pois, uma natureza comum a
todos nós que, de alguma forma, se manifesta ou, em alguns casos, é obscurecida
em determinadas situações?
Se tal natureza existir, esta seria essencialmente boa ou ruim? Se,
assumindo hipoteticamente que venha a existir uma natureza humana determinada,
esta poderia ser despertada ou obliterada por algum tipo de experiência? Qual
seria? O que poderia nos tornar mais humanos e o que nos desumanizaria?
A reflexão teórica sobre a natureza do gênero humano tem várias implicações
e consequências importantes e, é talvez por isso, ela busque sempre encontrar
uma forma determinada que possa ser a medida de nossa própria humanidade.
Vejamos algumas implicações importantes...
A primeira implicação desta discussão que salta aos olhos é,
precisamente, a discussão moral.
Afinal, quando discutimos sobre a natureza do gênero humano, estamos falando
também da função que os valores morais (sejam eles deduzidos de uma fé
religiosa, sejam eles deduzidos de uma Ética) assumem na orientação de nossas
ações.
Esta reflexão nos levanta outra questão: qual ordem de valores morais realmente estaria de acordo com
a natureza humana? A solidariedade ou o individualismo? A cooperação ou a
exploração? O altruísmo ou a inveja? Essas ordens de escolha de valores estão
relacionadas à concepção de natureza humana ou mesmo, a reflexão sobre sua
possível não-existência.
Mas a discussão moral relativa à nossa natureza não se relaciona apenas
à seleção de nossos valores individuais, ela também aparece em relação à
construção de nossa própria identidade como pessoa humana, e, com isso,
perpassa a discussão sobre as relações de gênero, de heteronormatividade versus
homoafetividade e de identidade de gênero. Em todas essas discussões e as
diferentes posições que elas inspiram, aparece a discussão de fundo sobre o que
seriam, na verdade, os atributos característicos de nossa humanidade e como
estes se formariam.
Mas a reflexão sobre a natureza humana não tem apenas implicações morais
e existenciais. Ela também condiciona
o nosso olhar sobre o nosso passado e a explicação do nosso presente.
Por isso, a reflexão sobre nossa natureza é também a reflexão sobre as possibilidades e os limites de nossa própria
evolução societária.
Vale lembrar que a nossa ideia de progresso – que esteve ligada a tantas
confusões e conflitos nos últimos duzentos anos –aparece relacionada à
concepção de natureza humana herdada do Iluminismo. Da mesma forma, o fatalismo
apocalíptico e pós-apocalíptico presente em nosso senso-comum hoje (e que
aparece reproduzido pelo cinema norte-americano em escala industrial), está
relacionado às reflexões sobre o “fim da história” e o fim da noção de sujeito.
Estas elaborações são trazidas principalmente pelos baluartes da
pós-modernidade e do irracionalismo contemporâneo.
A discussão sobre natureza humana, todavia, condiciona não apenas a
visão sobre o nosso passado e o presente, mas
as nossas perspectivas de futuro. Não por acaso os liberais, inimigos clássicos
do comunismo, sempre argumentaram que a construção de uma sociabilidade, cuja
produção e intercâmbio social não se dê mais através da exploração do trabalho,
seria uma ilusão, uma vez que, sendo o
ser humano essencialmente individualista e egoísta a exploração do homem
pelo homem seria um atributo de sua natureza, e, portanto, um aspecto
inescapável das relações sociais. Toda e qualquer tentativa de reconstrução de
nossa sociabilidade, segundo o discurso
liberal, redundaria numa situação de desigualdade social que refletiria a
nossa natureza.
Essa interpretação não está presente apenas no liberalismo, mas também
tem origem em várias correntes teológicas de muitas religiões, uma vez que a
natureza humana, segundo estas, apareceria
relacionada ao pecado original, e, portanto, assinala à incapacidade dos
homens de constituírem, por si mesmos,
qualquer ordem de sociabilidade que consiga coibir os aspectos pecaminosos do
nosso comportamento. As seitas apoiadas neste tipo de reflexão, em geral,
reservam para si a responsabilidade da domesticação desta natureza inevitavelmente
irascível, através do dogma da salvação da alma e condenam qualquer forma de
sociabilidade que não conte com a religião como seu sustentáculo para coibir a
bestialidade que há na humanidade.
Finalmente, há uma ordem de discussão – da
qual será objeto este pequeno ensaio – que aparece relacionada à nossa
compreensão sobre a natureza humana e que não se circunscreve nem ao debate
sobre valores, nem na discussão sobre nossos comportamentos e preconceitos
culturais ou sobre nossa compreensão histórica. É a discussão sobre a
fundamentação de nossas instituições políticas e jurídicas e, com elas, a noção
de direitos sociais fundadas numa compreensão naturalista da essência humana.
Esta discussão, como veremos, relaciona-se à
um problema que já dura há tempos, mas que nem sempre esteve explicitado na
literatura política contemporânea: a contradição entre as instituições do
Estado Político (que se fundam na moderna concepção da natureza humana) e a
crise da fundamentação teórica desta própria concepção.
Esta crise da legalidade histórica e epistemológica de nossa atual compreensão da natureza humana – do ponto de vista da discussão teórica – coloca em crise a própria legitimidade racional das instituições republicanas, como também da noção de direitos sociais, sobre as quais estas instituições deveriam ser as mantenedoras, como tentaremos expor nas linhas que se seguem.
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